quarta-feira, 19 de maio de 2010

A ARTE PORTUGUESA DE NAVEGAR

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Quando, em 1415, o Infante D. Henrique regressou da conquista de Ceuta, o teatro do mundo físico certamente apresentava ao seu espírito uma cena de grande confusão: por um lado o que se supunha ser a ciência positiva geográfica do tempo; por outro as lendas que quase tinham foros de verdades; por outro ainda os absurdos que a um espírito esclarecido se patenteavam, resultantes do combate entre essas lendas e as probabilidades de certeza. [...]
[...] E as lendas pululavam, avultando entre elas a do Mar Tenebroso, a do Equador inabitável e a do Preste João. Dizia-se por um lado: não se pode navegar muito para longe das costas que o Atlântico banha, porque a breve trecho se encontra a região das trevas perpétuas, onde o sol se apaga no ocaso, povoada de ferozes monstros marinhos, agitada por medonhos e constantes temporais, prontos a desfazer o frágil baixel que ousasse lá chegar; essa lenda vinha da antiguidade, e foi porventura preconizada pelos Árabes, que assim se desculpariam de não terem continuado nas suas navegações para o Ocidente. Por outro lado afirmava-se: é certo haver gentes para além da linha equinoxional; mas n'esta e nas regiões que se lhe avizinham, os raios do sol incidem com tal força que tornam impossível ali a vida humana, e impossível, portanto, a comunicação dos povos da Europa com os que habitam além do Equador. E, contava-se ainda, há bem longe da Europa, e d'ela separado por terras de infiéis, o reino de um príncipe cristão - o Preste João das Indias; - e ansiava-se por travar relações com esse irmão em crenças. [...]
[...] Por tudo isto foi o Infante D. Henrique estabelecer-se no Algarve e designadamente em Sagres, ponta avançada sobre o Oceano, a quem parecia espreitar os segredos, e d'ali começou a lançar a vasta rede dos seus cometimentos, cujas últimas malhas nem ele sabia ao certo onde iriam ter. Rodeou-se de homens experientes nas várias partes da marinharia, pilotos do Porto frequentadores da carreira de Flandres, marinheiros algarvios habituados à pesca do alto, mestres da construcção de naus nas tercenas de Lisboa, homens de Malhorca sabedores de astrologia e desenhadores de portulanos, porventura até mouros de Ceuta e de outras terras de Marrocos. De todos precisava, para de todos aproveitar o que sabiam, e melhorar consoante fosse necessário. Tal foi a chamada escola de Sagres, não um instituto de ciências navais, mas um convívio de conhecimentos diversos, em que todos eram a um tempo mestres e alunos. Aí se discutiram os problemas geográficos, e se traçaram os caminhos a tentar; lá se melhorou o instrumento para dominar o mar, passando-se da barca e do barinel, ainda hoje problemáticos, à caravela portuguesa, o tipo do navio dos descobrimentos no século XV; ali se corrigiram os portulanos, e se aperfeiçoou o seu uso para a navegação, quando mesmo não seja exacto que lá se inventassem as cartas planas. [...]
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Excerto da conferência feita pelo comandante Vicente Almeida d’Eça no Clube Militar Naval, em 19 de Fevereiro de 1894

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