segunda-feira, 31 de maio de 2010

PINGOS DE LITERATURA

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[...] São meus vizinhos, lá em baixo mulheres perdidas, ao pé de mim dois casados, e na trapeira um gato pingado, a quem chamam S. José. As mulheres passam às vezes na rua, com chales púrpuras a rasto; o gato pingado só sai à noitinha, à hora dos morcegos. Mais tímido que eu, encontro-o nas escadas a tossir, com o peito escalavrado e roto.
Para que vive esta ralé? Levantam-se derreados, para cavar, para berrar, para que lhes dêm um pedaço de pão e só se deitam no sepulcro. Caminho sem sonho. Da vida coube-lhes este quinhão amargo: o cansaço, a humilhação e a fome. [...]

[...] O gato pingado... Ei-lo que sobe. Cada passo me lembra uma pazada de terra. É soturno este homem, esguio e magro, com o chapéu alto embrulhado no lenço do rapé e a casaca dobrada no braço. Nunca fala. Estou mesmo em dizer que não pensa, este avejão que só sai para os enterros. Deve ser mau, deve ser duro: nunca decerto chorou. Os garotos apedrejam-no quando ele passa pela rua, esguio, vesgo, de chapéu alto e casaca, rígido clown da morte, que em lugar de gargalhadas toda a sua vida ouvisse lágrimas. [...]
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Raul Brandão in “Os Pobres”

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