quarta-feira, 29 de setembro de 2010

RELER EÇA

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Estas últimas semanas, em França, têm sido sanguinolentas. Os duelos sucedem-se tão regularmente como as madrugadas; e o primeiro espectáculo que o Sol, o velho e dourado Febo, avista, ao assomar a rósea varanda do Oriente, é um francês em mangas de camisa e de florete na mão, à beira de um arroio ou nas ervas de um prado, procurando varar com arte as vísceras essenciais de outro francês.
Parece que estamos sob o reinado do melancólico Luís XIII, quando, apesar dos éditos, mal tocava às ave-marias, não havia recanto sombrio do velho Paris onde não lampejassem duas espadas cruzadas, ou em tempos da república romântica de 1848, em que dois sujeitos que não concordavam sobre a questão da Polónia, ou divergiam acerca de Jesus Cristo – um considerando-o um imortal filósofo, outro apenas um pequeno Deus sem importância –, corriam a retalhar-se ao sabre, nas sombras do Bosque de Bolonha.
Não pode agora um honesto melro gorjear pacificamente as suas reflexões da alvorada, sem que o venha interromper uma velha caleche a trote donde emergem, soturnos e de negro vestidos, sujeitos com um molho de espadões debaixo do paletó.
Não ficam cadáveres pelos campos; mas a epiderme dos jornalistas e dândis é abundantemente deteriorada. [...]
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Eça de Queirós in "Ecos de Paris"
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