terça-feira, 28 de outubro de 2014

UMA VINGANÇA VISCERAL

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Tempos houve em que se guardava alguma correspondência debaixo da cama numa caixa de sapatos, ou numa mala. Eram fósseis de amores, negócios, desavenças. Às vezes devorados por fogueiras, num ataque de revolta, ciúme, ou tédio, outras vezes deixados à posteridade. Mas mantinham-se contidos. Eram privados. Já não há disso; ou quase.
Hoje, pouco do que se escreve não deixa rasto. O correio electrónico, de longe o mais utilizado, fica para sempre, até à consumação dos séculos, em bases de dados medonhas, verdadeiros depósitos sinistros de voyeurismo. Mas não só o correio não é o que era. Vou a Oeiras ou a Cascais e deixo rasto nas portagens. Almoço no "Fornos do Padeiro", em Paço de Arcos, e fica a pegada do cartão de débito ou crédito. Compro um par de botas na Net e as botas ficam na História, muito para além de estarem rebentadas. O mesmo com as compras online, o pagamento do condomínio, os filmes da Net, a marcação de viagens, rebabá.
E a falta de pudor dos big brothers não tem limite. Adquiro um livro na Amazon e começo a receber publicidade de livros do mesmo género. Abro o YouTube e encontro uma página personalizada, com alguns dos vídeos que vi recentemente e sugestões de peças semelhantes. Um dia destes, as sanitas trazem um chip para recolha de informação sobre o papel higiénico que uso, a dieta que faço e o perfil do meu trânsito intestinal. Neste caso, pelo menos, tenho a consolação de enviar-lhes uma mensagem—a de que estou a cagar-me para eles. 
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