segunda-feira, 22 de junho de 2015

PICASSO E OS MATA- MOSCAS

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O cidadão, pensionista da Caixa Geral de Aposentações, sentado no banco do jardim, observa as pombas no chão e uma ou outra garota em trânsito quando uma mosca—uma insignificante mosca—lhe pousa no braço a chatear. Sacode-a, mas passados segundos ela volta. Novamente a enxota e novamente volta. Levanta suavemente a mão e desfere-lhe uma palmada que, se não a transforma num corpo planificado, a deixa reduzida a pouco menos que isso.
Aquele ser tinha asas, pernas, aparelho digestivo, sistema nervoso, olhos e mais um ror de órgãos feitos de células complicadíssimas com um núcleo onde morava o genoma, depósito de informação inimaginável que a natureza levou milénios a apurar.
E daí?—perguntar-se-á. Era um ser insignificante, minúsculo e, ainda por cima, chato. Mais mosca, menos mosca, tanto faz. O que mais há são moscas.
A conversa é  irónica se  pensarmos que também se aplica ao homem que a esborrachou e aos outros—insignificantes, minúsculos e chatos é o que todos somos, mais um, menos um de nós tanto faz e o que mais há são homens e mulheres: mais de sete mil milhões neste momento, com tendência para sermos mais.
Aquela mosca mereceu morrer porque era chata e aquele homem não merece morrer, mesmo que cometa um crime hediondo. A isto chama-se antropocentrismo, justificado pelos crentes que reclamam para si um lugar à parte no mundo, cujo centro ocupam.
Salvo o devido respeito por todas as opiniões, parece-me que o antropocentrismo é manifestação pouco ética na maior parte dos casos. Predar, ou matar para comer, é prática generalizada no mundo animal, Homo sapiens incluído. Aceitemo-la, embora com reserva por não ficar muito bem na teoria do desenho inteligente. Matar para defesa própria, incluindo desinfestações e similares, aceita-se melhor. Mas matar por enfado, como no caso daquela mosca, é o quê?
Sei que o lavrado acima é considerado conversa de quem tem o encéfalo a bater válvulas. Provavelmente é. Mas pretende servir para mostrar como as coisas são relativas. "Fabricar" animais em condições industriais desumanas para abater e comer, ou criar gado para lidar numa praça de touros como forma de actividade lúdica não é muito diferente e não sei o que é pior. Mas muito diferente é matar uma mosca porque chateia. Dirão que a mosca é um insecto pequeno e insignificante e o touro é um grande mamífero. Qual é a diferença?—pergunto. O Bureau International des Poids et Mesures tem alguma bitola para o que é aceitável e o que não é, em função da dimensão ou taxonomia dos bichos? Suspeito que não tem. Sugeria que nos deixássemos de radicalismos porque, para chatear, já basta o Estado Islâmico e coisas muito mais graves do mesmo género.
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- Que eu saiba, Picasso nunca desenhou mata-moscas.
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