domingo, 3 de dezembro de 2017

A PROSA

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Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguda à maneira siríaca, reluziam, aureoladas. O braço inspirado mergulhava nas alturas como para as revolver. A capa, apenas presa por uma ponta, rojava por trás, largamente, negra nas lajes brancas, em pregas de imagem. E, sentados nos degraus da igreja, outros homens, embuçados, sombras imóveis sobre as cantarias claras, escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos.
Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII - mas um bardo, um bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O homem com efeito cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura, e
...os transcendentes recantos
Aonde o bom Deus se mete,
Sem fazer caso dos Santos
A conversar com Garrett!

Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo:
- É o Antero!...
Deus conversava com Garrett. Depois, se bem me lembro, conversava com Platão e com Marco Aurélio. Todo o Céu era uma radiante academia. Os santos mais ilustres, os Agostinhos, os Ambrósios, os Jerónimos, permaneciam fora, pelos pátios divinos, sumidos numa névoa subalterna, como plebe imprópria a penetrar no concilio dos filósofos e dos poetas. Mas o escravo Epicteto aparecia, ainda coberto das cicatrizes do látego e dos ferros - e Deus estendia ao escravo Epitecto a sua vasta mão direita, donde se esfarelava o barro com que ele fabrica os astros...
Epicteto, meu amigo,
Quero ouvir o teu ditame
E aconselhar-me contigo...

Então, perante este Céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quase aos pés de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como um discípulo. E para sempre assim me conservei na vida.[...]
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Eça de Queirós in "A Vida de Antero de Quental"
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